Coitada da Dona Farsa
Era uma farsa daquelas que não se vê mais por aí. Elegante, simpática, afável, competente e muito querida. Há tempos vinha se apresentando como uma possibilidade, um porto seguro, e foi numa tarde bonita de um outono interminável que ela trouxe as malas marrons quadradas e arrumou as suas roupas antigas no armário do quarto dos fundos. Sempre disposta, foi ganhando importância na rotina daquelas vidas, ajudando a lavar os pratos, a estender os tapetes, a arrastar a mesa de mármore. Passados tantos dias, já não havia jeito de mandá-la embora, não só porque ganhara o coração dos anfitriões, mas também por ter um jeito meigo que não deixava ninguém conseguir encará-la com intenções perversas. A família estava completa, sentada ao redor da mesa de jantar: o pai, a mãe, os dois filhos, o cão e a farsa, (esta majestosamente na cadeira da ponta). Todos pareciam contentes e satisfeitos por possuírem vidas tão alegres e regradas. Bem sucedidos, estufavam o peito ao falar sobre projetos e metas, enquanto a dona visitante fixava seus olhos cor de geada nos lábios dos emissores de mensagens simbolicamente incoerentes. Refletia consigo mesma, nos momentos em que estava só, a elaborar os relatórios sobre a experiência. “Um trabalho que mata lentamente, feridas que não cicatrizam. Uma vida sem alarmes e sem surpresas. Uma casa tão linda e um jardim tão belo. Uma vida sem alarmes e sem surpresas”, escrevia. Sinceramente, ela queria logo a aposentadoria, pois a cada dia era maior a vontade de gritar, extrapolar tudo aquilo que tinha guardado no peito durante a estadia em mais uma das milhares de residências por onde já passou. Ter essa função não era moleza. Uma farsa atendendo quatro pessoas é um trabalho desumano, “leve-me embora daqui”, ela pedia em suas preces. Todas as noites.
Que revolta, Scheylinha!
ResponderExcluirMas ela sabe que nunca durará tanto tempo na vida das pessoas.
ResponderExcluir=)
Curioso e bem bolado.
ResponderExcluirTô gostando bastante do blog!
Eu sou uamfarsa também. Ou uma fraude, como queira.
ResponderExcluirFaz tempo que não passava por aqui. Decidiu alongar um pouco os textos? Não perdeu a mão. ;)
Bjo!