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Mostrando postagens de 2009

Durante a via casa-trabalho.

Para não variar, a manhã estava nublada. Na descida da Rua Marechal Deodoro, em baixo de um boné promocional, Seu Antonio mostrou os dentes com avidez, na forma de um sorriso familiar, e logo soltou um "bom dia!", daqueles que quase nos convencem de que realmente tudo vai ser muito bom. Pela sua presença, é certo que se tratava de uma segunda-feira, quando ele passa nas redondezas para recolher as sacolinhas de mercado com recicláveis, na frente das residências. Mais abaixo, no cruzamento com a Rua Dona Noca, uma Variant TL 1971, motor 1600, modelo bem-antigo-até-retrô, de cor cinza meio azulado, estava com uma carga de grandes bolas de coloridas de plástico (daquelas que a gente ganha em jogos de parques de diversão) numa rede acoplada no teto. A cena foi inusitada. Já na Praça da Bandeira, uma senhora de poucos quilos carregava uma mochila que parecia pesada, mas a mulher tinha o rosto sereno e estava contente. Logo ouvi o barulho do trem que cruza o vilarejo. Eita!

espírito natalino...

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I ntrepidez talvez seja um adjetivo que caiba à definição do menino que agora usa camiseta vermelha de detalhe azul na gola. Isso porque ele não teme qualquer coisa e sempre observa as pessoas através do fundo-bem-fundo dos olhos, sem nem se importar com as consequências desse ato tão bravo. Gosta de sentir o medo translúcido nos rostos cansados dos adultos, que desviam a expressão para o lado quando se sentem desmascarados. Acha que não tem o que perder e nem se importa mais em ganhar alguma coisa. A última vez que recebeu um presente desses de fim de ano, foi um caminhãozinho de plástico seco e ruim, logo quebrou, antes da Páscoa. Sabia que quanto mais apelativo e emocionante conseguisse ser no momento de escrever a cartinha - claro, sem pedidos muito caros - mais chances teria de receber uma visita de um carro da prefeitura ou de voluntários. Esses caridosos sempre vinham com câmeras fotográficas ou filmadoras, para registrar. Bondade sem registro não vale nada na hora do relatório.

Sonhos de fim de tarde - parte I

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Ele vive ali há algumas horas. Ao todo acha que dá uns trinta anos, contando desde quando tinha quase sessenta. Os seus dias vão embora correndo ou rastejando, um atrás do outro, sempre assim. Mesmo quando parece que não passam, no fundo ele sabe que não tem mais volta. Quando chega visita, logo o homem pergunta: "Você me ajuda a achar uma noiva? Mas precisa ser gente séria, porque aí eu posso sair daqui e fazer minha vida". Esse é o seu sonho mais recente. Desde quando ficou viúvo, passou a morar no S.O.S., em Guarapuava. A instituição ampara as pessoas que, inesperadamente, passam a não ter um lar (ou a não caber no que lhes pertencia), geralmente aquelas que estão nas últimas das infâncias e já não desejam muito além da não-solidão. Agora, enquanto escrevo este texto, o que será que ele está fazendo? Talvez imaginando vidas, de olhos abertos, enquanto mantém o olhar fixo na suave dança das folhas com o vento. Deve perceber que é domingo exatamente pelo sorriso das árvores.

anamnese

Não fez calor demais no dia em que a cidade sumiu. A manhã acordou opaca, como algo inédito. Os pássaros meio quietos de canções, o sol ardendo em si maior. A menina estava sentada no quintal de trás do lar tão doce, comendo um pêssego azedo, direto da árvore, carregando toda a chuva dentro dos seus olhos cor-de-mar. (A mesma água que inundou o que existia ao redor algum tempo depois). E ninguém um dia pensou, nem nos devaneios de fim, que esse dia chegaria, não tão cedo. Muitos casais não se despediram e outros nem puderam formar um par; um bocado de crianças não terminou as brincadeiras; uns velhos não conseguiram beber seus cafés-de-nostalgia. Hoje, falando assim, pode parecer invenção, mas foi num dia como o de hoje que a cidade desapareceu, sem rastros de outdoors e neons, sem redenção. Isso foi o que a mulher de pele já bastante usada contou, enquanto apertava a testa, num esforço de trazer novamente ao coração o que um dia acredita que viveu.

Ele faz cinema

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O quarto já ganhara uma aparência amigável, depois fúnebre, agora neutra. Ali ele existia, pois naquele lugar pensava. Podia fazer o que fosse, mas não conseguia fugir do seu fim pensante, mesmo quando se perdia pensando em seu desejo de não mais pensar. Intrépido, procurava segurar com todas as escassas forças o momento, os sons, os aromas. Era quando sentia intimamente sua pele envelhecer, num desespero ritmado, e então percebia que se tratava de um instante de aventura ou como leu um dia: da compreensão da irreversibilidade do tempo. Estava só, deixando-se carregar o vento. Via o tempo atravessar o vilarejo e a cidade já não morava mais nele. Trouxe à lembrança sorrisos de Cecília, Lígia, Bárbara, Rita, Joana. Nunca é tarde, nunca é demais. Lembrou ter ouvido alguém famoso ter dito que viveu uma 'vida sem tempos mortos'. "Bobagem!". Tudo depende das significações dadas, por isso não acreditava em receitas ou dicas para uma boa caminhada. Por que considerar maus os

Daquele dia até agora

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Elas aparecem aos punhados com suas camisetas azuis, alaranjadas, verdes, brancas, com ou sem estampa. Como embaladas por uma valsa em fuga, somem nas ruas, por trás dos toldos velhos e sujos. Onde todas se escondem quando o céu começa a ganhar tons escuros? Por que é que o Zé sempre cruza o cemitério? Por que olha, arisco, para os três lados antes de entrar? Parece que se esconde, mas de quem? Quase no céu, em cima de um prédio, outro Zé ajeita a massa. Suas mãos ásperas procuram trabalhar o cimento da melhor maneira. Movimentos circulares e depois retos verticais, ele tira o excesso e passa o braço na testa suada. Suspira. Mesmo depois de tantos anos ainda treme quando olha para baixo. O homem assovia uma canção e a brisa passa para, em seguida, encontrar outro alguém. E isso nunca para. Foto minha.

Aos que sabem das horas

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Quando vejo pessoas que sabem viver com o tempo faço silêncio, por respeito. Para elas não há disputas ou correrias, não há prazo de validade ou peso na consciência. O tempo torna-se apenas o tempo, seguido de prosas, pequenas e boas alegrias, como o gosto do pão quentinho com manteiga derretida ou o barulho dos grilos misturado ao canto dos pássaros no quintal. As horas são música, o sol da tarde é consolo e o anoitecer, despedida, mas logo um reencontro. Nesta semana conheci o Seu Osvaldo. Ele sabe dessas coisas, eu sei que ele sabe. Foto minha.

Cadência

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Faz uns dias que a primavera se fez e sinto que esta demorou mais do que o costume para chegar. Ontem eu me esqueci de regar as tulipas na garagem, um cheiro de jasmim brotou da gaveta das toalhas de banho e o céu ficou perturbadoramente violeta. Tudo cresce neste instante, justamente enquanto tento não acreditar que brincos-de-princesa não enfeitam mais nosso quintal. Aliás, nosso talvez já não seja o correto, o meu. Sim, o meu. Mas ainda faço a mesma quantia de arroz todo dia, duas xicrinhas. Sobra tanto que não sei se deixo na mesa para quando você retornar da sua caminhada matinal ou se jogo aos pássaros que cantam entre as margaridas. Confesso que ainda não abri as duas portas do lado direito do armário conjugado, parece que estão trancafiadas de memórias invencíveis. Cada uma das roupas me lembra um sorriso seu, que traz outras coisas junto, como o seu jeito de parar com as mãos no bolso. Isso pode soar meio egoísta, mas a amargura nos meus dedos me impulsiona a lhe escrever: Voc

Acredite e ele aparecerá

Meu irmão me disse que eu só não vejo por não mais brincar na terra, ou por ter deixado de sentar na calçada nas tardes preguiçosas, como outrora. Mas cá entre nós, eu duvide-o-dó que seja por esses motivos. O tatu-bolinha é um mito de infância, isso sim, que só é visto por olhos de ver e só pode ser tocado por dedos miúdos, quando *ALACAZAM*: a mágica! Ele se contorce todo e finge de morto, virando uma bolinha cinza. Lá dentro segura a respiração, nem um barulhinho ou sinal de vida, até que passa um tempo, o danado retoma a coragem e segue seu caminho, apressado. Se eu fosse do tipo ortodoxa, contaria que ele é um artrópodo, pertencente à rama dos crustáceos superiores e à ordem dos isópodos, com a desenvoltura de uma sanfona. Ah, eu ouvi dizer que tem muita gente que odeia o pobrezinho, só porque ele gosta de soja, girassol e milho (mas quem é que não gosta?). O tatuzinho tem tantas perninhas que quase não dá para acreditar e ontem ele estava andando ligeiro na calçada laranjada. Sil

A notícia que não saiu no jornal

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Seu Geraldo é guarapuavano e trabalha no ramo da venda de algodão doce há uns vinte anos. Anda por todos os bairros: Santa Cruz, Boqueirão, Santana, onde der. Agradece quando faz sol, principalmente no domingo a tarde (ultimamente ele deve estar triste). Já tentou sair com o tempo chuvoso, mas não conseguiu vender nada, porque as pessoas se escondem e sequer ouvem o seu chamamento. Ele logo explic a: Algodão + máscara de super-herói é R$2, sem máscara, R$1,50. O homem é do tipo convencional. Sem grandes sonhos, ambições, sorrisos, alegrias. Não se vê nos seus olhos o reflexo do céu, tampouco em suas palavras desejos de porvires bons. Ele não chama atenção quando passa, a não ser quando arma o guarda-sol em cima da sua bicicleta. Parece que não tem orgulho do que faz, de certo não imaginava sua vida assim em outros tempos, mas é assim que é, e ele aceita, dando um jeito de continuar. Talvez alguém diria: não há nada o que se dizer sobre esse pobre humano, abandonado na vida como um a

Prelúdio nº 0

Ouviu silenciosamente o chorinho no violão mal ou bem afinado. Tanto fazia, porque a melodia era rara e cada dedilhada tocava agudamente no mais escondido do seu ser. Não adiantava o esforço, não conseguia entender porque os laços eram tão frágeis e quase sempre superficiais. Queria das pessoas um algo além do trivial que fosse, mas parecia ser o único, numa sala cheia de vazios ansiosos para ver o gol. Bem lembrou que dia desses ouviu uns comentários sobre ser necessário humanizar os humanos. Agora fez sentido. Para ele, é claro.

Ela sorriu para mim

Hoje a tarde uma senhora de cabelos de vovó sorriu para mim. Ela estava me observando, eu percebi. Quando retribui o olhar, senti nela algo de nostálgico, algo de reminiscente e bonito. Aquela mulher deve ter voltado alguns anos nas suas lembranças, talvez tenha trazido à memória a sua juventude, o tempo em que ela também andava pelo mundo sem desconfianças ou comprometimentos. Num simples mover de lábios, deixando transparecer os dentes, senti o peso quase leve dessa peça que nos arma o tempo. Sempre ele. Após passar por mim, fiquei com a cegueira causada pelo reflexo do sol nos seus óculos, um momento apenas, e logo ela sumiu por entre as ruas com calçadas enfeitadas por flores rosa caídas dos pessegueiros. Segui observando as casas, certa de que cada casa é um reino. Às vezes, quase sempre em dias de nuvens branquinhas, dá para ver atrás das janelas entreabertas. Fotografias de família colocadas na estante, ao lado da televisão; pequenos enfeites empoeirados, todos têm. Outras vezes

filmes em retalhos

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Ultimamente tenho visto uns. Cenas bonitas, entre elas a dança das mãos de Santiago, o acordeom mágico de Janna, a lúcida tristeza de Yesterday. Desses eu gostei. Legenda da imagem: Yesterday; Santiago; House of fools; Estômago; Minha vida sem mim; Paris, te amo; Uma vida iluminada; Garden State; Valentim; Juno; O passaporte húngaro; O homem que não estava lá.

flo-rir (...!)

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"Você sabe que não deve acreditar em mim", alertava, enquanto tinha o rosto virado, a mirar as réstias solares que iluminavam os dentes das crianças na praça. Pensava em coisas como nuvens e alfaces, sentindo na boca um gosto de dejá vù. "Será que sempre será?", (isso em forma de balão-algodão). Tudo tão distante no tempo e no espaço semi-sideral-vilão (argh!), tudo tão perto que quase-que-quase encosta a mão. Mas então houve silêncio e o já visto virou fumacinha (plim!). Voltou-se para ele, que agora observ ava o chão com sua calçada cinza e concretamente sofrida. (Ah!), dois universos tão distintamente parecidos, não tem como dar música, apenas ruídos e um ou dois sorrisos. Mas vez ou outra aquele ali se transforma no seu porto seguro, longe das avenidas e alamedas e tristezas e e's. Só por isso, e por nada mais, ela deixa estar, deixa vir, deixa florescer. E, assim, ambos continuam seguindo, flo rindo . Foto e texto meus.

Fez-se Sol

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Andando pela Guarapuava que restou após tanto céu desabar e dias virarem cinzas e úmidos, eu vi umas cenas que não deviam deixar de dançar. Vi e sorri. Vi e não vi. Vi feito quem pensa em outras coisas que estão nos pensamentos que voltam a brilhar após o encontro com a luz solar, e o silêncio foi quase azul. Assim, lembrei de umas palavras de Quintana: "A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo... Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam logo ali... Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando."

o que foi mesmo não sendo

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Parou subitamente para olhar, então, não aquilo que poderia ter sido, mas o que foi e, por isso, é. Constatou, sem euforia e com uma sonolência típica, que o hoje foi feito de tantos caminhos idos e vindos (com o all star branco ou não) no decorrer dos anos apressados e que tudo poderia ser diferente, não fossem as ruas, os rostos, os singelos sonhos que atravancaram feito pedra o caminho da menina tão igual às outras. Mas as mesmas palavras que cintilavam anos atrás continuam fascinando. E como quem, só por teimosia, não se rende ao não, ela insiste em acreditar, já sem arrependimento de passados, sem gostos amargos na boca. Chega até a sentir paz. E ela pode seguir pelo caminho que desde sempre foi levada a trilhar, agora vai para um lugar incerto, talvez, o certo é que será. Ah, e o tempo, aquele amistoso companheiro, é apenas o tempo, e tudo o que ele traz. Foto e texto meus.

palavrinhas

A vaca masca inóspito pasto um misto ingrato de saudade e de mato *** o sol se põe põe-se o sol por si e só

Ninguém notou.

Era perto do meio dia e brilhava o sol, alto; muitas pessoas apressadas, todas agindo conforme o script de um dia normal. Eu estava andando cabisbaixa, pensando em várias coisas, aqui e acolá, nem lembro o que eram, se é que eram. Quando olhei para o lado, vi uma mulher segurando um menino, ela pediu dinheiro para comprar comida, eu balancei negativamente a cabeça, como uma resposta automática e segui. Porém, alguns passo s adiante, parei. Começou a incomodar a minha atitude, feito um aperto que maltrata, ora, por que tratar as pessoas como se fossem formigas? Talvez se, ao invés de uma mãe e um filho, estivessem naquela calçada uma cadela com a sua cria, muitas pessoas parariam e exclamariam: "Oh, que dó, tão bonitinhos e abandonados no mundo!", quiçá até os levariam para casa. Mas não eram cachorros, eram humanos e, por isso, não receberam a atenção dos seus "semelhantes". Fiquei com ânsia por ter feito o que fiz: o que todo mundo sempre faz. Voltei e me sentei ao

Eu sou o Thiago, irmão do Felipe

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"Sinopse" do filme Mutum (2007, Brasil, Sandra Kogut). Ele tinha um jeito de quem já sabia disso tudo, de quem via além, por detrás das poeiras. A mãe, zelosa, o amava mesmo assim, até tanto quanto tinha estima pelos outros quatro. Já o pai, se irritava rápido e muito. Mas é que aqueles olhos embaçados e verdes não cansavam de correr, pelas cenas, pelos chãos, pelos céus, como se fotografassem cada momento para uma futura análise. Prestava atenção na maçaneta que girava, nos pingos da torneira mal fechada, nas folhas marrons furadas que o vento levantava e derrubava no ar, nas formigas cabeçudas que subiam os troncos. Quase não falava, o que gostava era de conversar e rir com seu irmão-melhor-amigo. E ter ficado só depois de um tempo foi doído, pois é angustiante não ter com quer dividir os planos de futuro, os medos dos pesadelos, a cama de solteiro, as incongruências dos adultos. Mas aos poucos as coisas vão ficando nítidas. Foto: Divul

senhoras e senhores

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Tirando o fato de ver bicho que sofria (tinha pena dos elefantes), ela sempre gostou de ir ao circo. Parecia que era só entrar no cercadinho que mudava o mundo! Lá dentro não tinha um monte de coisa chata que via todo dia na rua ou na escola. Ao contrário, homens se vestiam de colorido e calçavam sapatos gigantes; os limites eram ignorados; a diversão, o encanto e a novidade eram inevitáveis, irresistíveis. Pensava, enquanto comia pipoca doce, sobre como era a vida de todas aquelas pessoas talentosas, hoje aqui, amanhã acolá, depois de amanhã além, quem sabe? Chegou a desejar ser parte da equipe dos que trabalham em arriscar a sorte, em fazer rir quem precisa de distração, em movimentar as cidadezinhas.  Contudo, imperceptivelmente, foi desistindo de achar graça. Começou a considerar o ingresso muito caro; os palhaços bobos; os trapezistas, fracassados. Inutilmente buscou resquícios daquele sentimento de outrora, mas seu coração criou uma proteção-contra-lembranças-circenses. Deve te

Um coração que não se cansa

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Em baixo de algumas camadas de cobertores ainda era possível constatar que existia um coração, aquecido e cansado, funcionando em ritmo sereno. Embora contra vontade, levantou da cama com sutileza, e foi rumo ao seu ritual matutino. Lavou o rosto com uma água cortante que saía aos gritos da torneira. Uma vez mais, viu sua face refletida no espelho escurecido do banheiro pequeno. Arrumou os cabelos com toda a paciência do mundo, segurando com a boca o grampo preto, enquanto seu pensamento fugia pela fresta na porta. Só por hoje resolveu acreditar e, por isso, colocou seu vestido florido feito de um tecido antigo, daqueles que já não se produz mais. Com elegância, pegou a bolsa branca que ganhara no último aniversário e saiu à rua estufando o peito com ares de paz, rumo à vida, cantarolando sua canção predileta: “meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer...”

Algum deles vai vingar?

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E diga lá, quantos varais existem espalhados mundo afora? Neles devem estar penduradas roupas coloridas, quiçá velhas, junto a sonhos mal lavados que se sacodem ao fervor do vento gelado, se estendem de lá para cá, mas não alçam voo. Estão presos por grampos beges lascados. Dia desses eu vi o varal duma casinha na beira da estrada, rumo ao sudoeste do universo. Fez sol depois de uns dias intermináveis de céu-nublado-cor-de-saudade. Por isso, as roupas estavam vistosas, eufóricas. Pensei cá comigo, varal é uma coisa engraçada. Seja a pessoa endinheirada ou não, todos têm um parecido, na varanda ou no quintal. Com a mesma função: Segurar roupas. Sonhos. Foto minha.

Pensamento derradeiro

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Neste instante tem um moço de olhos escuros na praça de pedágio, desejando boa viagem a quem quer que seja. Ansiando que o relógio seja generoso e encerr e o expediente o quanto antes. Por ele acabou de passar um caminhoneiro calvo, rumo a um destino incerto, mas distante. Chegará a um restaurante onde uma mulher de mãos delicadas lhe servirá um prato quente de sopa de legumes. Prato que será lavado por outra garota, ainda sonhadora, na cozinha dos fundos. Esta tem esperanças que estão além-do-vale, já a outra nem lembra qual é o dia da semana. Um pouco longe dali, um menino de camiseta pólo listrada e bochechas rosadas brinca num pneu abandonado que encontrou. Ele imagina como era o primeiro dono desse brinquedo. Enquanto isso, na calçada, vão e voltam outros elementos sociais em construção, paredes sem tetos, assim como a casa que abriga o pneu amarrado na corda, o menino risonho, o fio que dá sentido ao universo. Pense. Foto minha. Blumenau-SC.

seja o que flor

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Mas deixa que seja e quando for vai ser de um jeito melhor. O dia respira ofegante, ou suspira aos prantos, mas chega a um ponto em que tanto faz. “Tente esquecê do que é triste, amargo, incolor. Enxuga essa lágrima, menina. Não vale a pena. O mundo é assim mesmo, um furdunço, não vai mudá se você chorá. E nem se você corrê. Já foi dito que só tende a piorá. Se a vida é uma espera, já sabemo que só temo que esperá”. E se me permitir, eu te digo: Aquieta o peito, a culpa dessas discrepâncias não é tua, ou talvez até seja, mas só um tiquinho. A verdade é que é um pouco de cada ser vivente da terra. Mas só uns alguns sentem como você sente. Sempre foi assim. E sempre será. Foto minha. Guarapuava-PR.

Coitada da Dona Farsa

Era uma farsa daquelas que não se vê mais por aí. Elegante, simpática, afável, competente e muito querida. Há tempos vinha se apresentando como uma possibilidade, um porto seguro, e foi numa tarde bonita de um outono interminável que ela trouxe as malas marrons quadradas e arrumou as suas roupas antigas no armário do quarto dos fundos. Sempre disposta, foi ganhando importância na rotina daquelas vidas, ajudando a lavar os pratos, a estender os tapetes, a arrastar a mesa de mármore. Passados tantos dias, já não havia jeito de mandá-la embora, não só porque ganhara o coração dos anfitriões, mas também por ter um jeito meigo que não deixava ninguém conseguir encará-la com intenções perversas. A família estava completa, sentada ao redor da mesa de jantar: o pai, a mãe, os dois filhos, o cão e a farsa, (esta majestosamente na cadeira da ponta). Todos pareciam contentes e satisfeitos por possuírem vidas tão alegres e regradas. Bem sucedidos, estufavam o peito ao falar sobre projetos e me

Enquanto isso, por entre a cerca de madeiras assimétricas, o cachorro fugia.

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Hoje, talvez só hoje, foi a cena que encucou. Na cabeça da mulher que lavava roupas num tanque sujo, e na minha muito mais. O momento lúdico antes do almoço, onde a brincadeira é um levar o outro num carrinho improvisado, através da poeira da rua esburacada, enfrentando os monstros e o dragão, além das barreiras do percurso, com risos e imaginação. (Sem hot weels , sem barbies , sem pokemóns ). A simpatia deles era toda ao que tinham ao alcance das mãos. Texto meu, foto minha. Morro Alto, Guarapuava-PR.

da série Profissões!

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Ao som de uma canção dançante, o indicador da mão direita se remexia ao lado da cabeça da cartomante. Embalada por um ritmo avesso às batidas que ouvia no bom e velho companheiro 'Radinho Vermelho', ela observava o evaporar da tarde com graça, no meio da muvuca que é a feira de praça. O dia estava fraco para clientes,e ela bem sabia que isso aconteceria - viu numas cartas -, por isso foi preparada com duas pilhas extras, para o caso de que um acaso qualquer lhe obrigasse a ficar sem as músicas das estações FM's. (É que o som a entrete e não deixa que ela se entristeça ao lembrar do que descobriu dia desses sobre o seu futuro). "E tem quem diz que é fácil ser cartomante", resmunga. Foto minha, Curitiba-PR.

Seguindo a estrada amarela.

“até onde a vista alcança, tudo pertinho, a quilômetros de distância” Dorothy e seus cabelos alaranjados, canelas finas, sapatinhos vermelhos cheios de mistério, olhos-estrela. Acabou de chegar num mundo colorido, onde as cores têm c o r e s e cheiros, “talvez seja o algum-lugar-depois-do-arco-íris ”, ela acredita. Anda e anda com seu cachorrinho Totó, só nos paralelepípedo s amarelos, seguindo a re comendação dos anões de vozes finas. Seus amigos são os mais inusitados: um espantalho que quer um cérebro, para poder se sentar no sofá e colocar a mão no queixo e pensar (que desejo de se ter, alguém dirá). Um homem d e lata ansioso por um coração, porque sonha em ser sentimental e romântico, ele contou que ach a triste não te r esse membro pulsante perto do pulmão. Ingênuo, não? E tem o leão sem coragem, b izarro, choroso. Seu rosnado não assusta nem quem é bem medroso. Lá também existem as bruxas, ah, as bruxas más são magras e feiosas, e sempre aparecem para atazanar quando tudo quas

Puro sangue e seu rei escudeiro

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Pïqüy (com dois tremas, sim) era um alguém bem amado. Aonde chegava fazia um rebuliço, era só gente correndo para lhe dar um abraço. Tinha um sorriso que não deixava ninguém borocoxô, nem moça, nem menino, nem sinhô. Seguia toda vida com seu amigo que era rei, indo rumo ao império no além, "lá era lindo, lá era o lugar mais lindo", repetiam animados! Lugar perfeito para puros sangues, mesclados, ariscos ou avoados. Ouviram boato de que era só seguir o som que passeava com as folhas no céu verde azulado. Em todo lugar que ele parava, ganhava outro pedaço: Colorido, redondo ou quadrado. Ele já parecia até uma colcha daquelas bonitas, de retalho. E quando chovia ou o se o sol luzia, eles cavalgavam cantando o refrão de uma antiga canção (que não rimava, mas acalantava o coração): “Tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento... Muito prazer, ao seu dispor, se for por amor às causas perdidas. Por amor às causas perdidas!”. Texto meu. Ilustração: Jenny Kostecki