Meia cinza, meio azul

No dia em que conheci a senhora do homem das horas, ela não fez questão de sorrir. Mas o jeito como me olhou ao saber o que eu queria deu mostras de que há muitos segundos me esperava; logo gritou para o marido: “a moça do jornal quer ouvir as tuas histórias, em que horário você pode?”. Canelas rechonchudas, dificuldade para andar, rosto sereno, tricô a tiracolo, jeito bondoso e direto, sem enfeitar demais, sem reclamar. Ao contar os causos, o marido se referiu a ela vez ou outra. “Eu e Maria vivemos no nosso paraíso, porque não brigamos”, e a amada deixou escapar um riso de canto, balançando a cabeça como quem se acanha e quer mais. Quando ele entrou nos planos futuros, mostrando com gestos tudo o que pretendia modernizar no comércio, ela ficou em silêncio, depois me falou baixinho, com a certeza de que o esposo não ouviria: “Não ligue para esta parte, ele sonha, mas já estamos perto dos 70”. No decorrer dos minutos criamos uma relação de confiança, dia ou outro eu visitava o casal. A mulher me dava conselhos, fazia perguntas, certa tarde até pude ouvir sua efêmera gargalhada. Quando falei em ir embora, ela ficou séria, depois considerou que era mesmo o melhor para mim. Foi para trás do balcão e voltou com um par de meias de lã cinza - as que eu uso esta noite.

Comentários

  1. Ai, Scheyla... Vc e suas histórias...
    Fico muito feliz de poder conviver com vc e ouvi-las cotidianamente.

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